Ana Freitas Reis nasceu em Lisboa (Portugal). Poeta, psicóloga, aluna de doutoramento em Filosofia, área Estética, na NOVA FCSH. Autora de Cordão (abysmo) e Guarda Nocturno (fresca), participou na Antologia poética de homenagem a Maria Judite de Carvalho (poética edições) e na Antologia de 35 poetas portuguesas Tras los Claveles (Garvm). Desde 2016 escreve semanalmente poesia para o programa de rádio Em Transe. Tem publicado poesia e ensaio em diversas revistas emPortugal e no Brasil como Egoísta, Intro,Flanzine, Lote, Caliban, Capivara, Diversos afins, Fluir; Torquato, Ruído Manifesto, Cadernos Chão da Feira, entre outras. É coautora do projecto de residências artísticas ESPALDAR. Actua, em contexto individual e de grupos, no território multidisciplinar da psicanálise, teatro, filosofia, teoria e prática artística. É mãe de 4 filhas, leitora, cinéfila, sofre de melomania e outros títulos não académicos.
O sonho é “o mais antigo e não menos complexo dos géneros literários”[1] - esta é a tese do escritor argentino Jorge Luís Borges anunciada no prólogo do seu Livro dos Sonhos, uma colecçãode sonhos compilada por Borges dos textos bíblicos aos mitos greco-romanos, da filosofia chinesa às obras dos últimos séculos. Este “género literário”, igualmente caro à Psicanálise, é enunciado na narrativa de Sigmund Freud como a chave ou porta do inconsciente, na sua célebre obra A interpretação dos sonhos, na qual o insondável sonho surge como a realização de um desejo e tem o sono como o seu guardião. Efectivamente, há uma dimensão de comprazer no entendimento imediato da figura de um sonho, em que tudo fala numa lógica diferente do quotidiano, ideia esta alinhada com o que o filósofo Friedrich Nietzsche descreve, bem antes da Psicanálise, do sonho: símile da interpretação da vida e oriundo de um corpo pulsional, como se de um mundo de arte se tratasse. A problematização da relação entre arte e vida é uma das questões nevrálgicas do filósofo alemão. No seu livro inaugural O Nascimento da Tragédia(NT), Nietzsche concebe o sonho como o “analogonsimbólico” das artes em geral[2], a manifestação fisiológica de uma pulsão artística. Segundo Nietzsche, genealogicamente foi um impulso/instinto/pulsão artística[3] que se relaciona com a manifestação fisiológica do sonho, que criou os deuses greco-olímpicos, este mesmo instinto que se encarnou em Apolo, o “decifrador de sonhos” e deu origem a todo o mundo olímpico[4]. Convidamos, neste curto espaço, a indagar em que sentido podemos pensar e compreender o sonho como necessidade vital e a sua relação com a criação artística, como dispositivo crítico, para além do senso comum da interpretaçãoda arte como ilustração de conceitos. A “bela aparência dos mundos do sonho, em cuja produção cada ser humano é um pleno artista” (...) “essa alegre necessidade da experiência onírica”como enuncia Nietzsche[5], leva ao levantamento de certas inquietações:quem sonha? qual a relação entre o sonho e o quotidiano? oque difere o sonho da realidade? um sonho pode ser arte? em que sentido um sonho interpreta a vida? São inúmeros e complexos os pontos de contacto diante do desconhecido, nos quais seenvolve o fascínio humano pelo sonho, talvez tão antigo quanto a própria humanidade. Sobre os sonhos sedimentou-se, através dos séculos, um imaginário que versa (não só de modo singular como colectivamente)mistérios, visões, conflitos, quer pelas suas formas e conteúdos, quer na descrição da sua atemporalidade, soberania, espontaneidade ou paradoxos.Nos sonhos, escreve Nietzsche: "apreciamos a compreensão imediata da forma, todas as formas nos falam, não há nada indiferente e desnecessário (...) em toda esta“divina comédia"[6]. Para o filósofo, sonho e aquilo a que chamamos realidade são distinguíveis. O sonho é visto como um ‘mundo de arte’ separado e dá a consistência que falta à vida quotidiana”[7]. Por isso, quem sonha, como pensa Nietzsche, observa atentamente e com prazer, pois “a partir dessas imagens interpreta a vida, a partir desses processos treina-se para a vida”eé por isso que o sonho pode também tornar-se "o analogon simbólico" de todas as artes, "através das quais a vida se torna possível e vale a pena ser vivida"[8]. Antes de mais o sonho, aqui, é a ‘poesia da vida’: não se trata de uma invenção da vida, mas antes de uma interpretação da vida, interpretação esta que requer
[1]Esta tese teria sido inspirada em um ensaio escrito no final do século XVIIpelo inglês Joseph Addison.
[2]NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia, Tradução de Teresa Cadete, Lisboa, Relógio d ́água, 1997, NT 1.
[3]Não nos debruçaremos sobre as eventuais diferenças entre estes termos, ainda que Nietzsche os utilize, por diversas vezes, de forma mais ou menos equivalente. Sabe-se também que anoção de impulso artístico[Kunsttrieb] ocorre no pensamento alemão desde meados do século XVIII, cujo desenvolvimento está fora do âmbito a que nos propomos.
[4]A intenção de Nietzsche em O Nascimento da Tragédia foifazer-nos mergulhar na história da arte grega através das lentes de Apolo e Dionísio, as duas divindades da arte grega como as personificaçõesestéticas das pulsões fundamentais que constituem a subjectividade humana. Por motivos de restrição teórica não faremos a distinçãodesta duplicidade eimportante dialéctica estética evocada por Nietzsche.
[5]NIETZSCHE, NT 1.
[6]Idem.
[7]Para um maior aprofundamento desta interpretação verFIGAL, Günter, Nietzsche. Eine philosophischeEinführung, Reclam, Stuttgart, 2001, p. 44-77.
[8]NIETZSCHE, NT1.
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